Millor Fernandes:


Jornalismo, por princípio, é oposição – oposição a tudo, inclusive à oposição. Ninguém deve ficar acima de qualquer suspeita; para o jornalista, não existem santos.

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quarta-feira, 5 de junho de 2019

GAROTA EXEMPLAR E A EXALTAÇÃO À INFÂMIA




A desgraça alheia sempre causou fascínio nas pessoas. A fofoca, calúnia, o disse-me-disse sempre foi o assunto preferido da vizinhança e sempre rendeu histórias interessantes tanto que, com o advento dos reality shows, programas de auditório que exploram as mazelas dos mais humildes e as redes sociais, a infâmia atingiu seu apogeu. E se alguém brilhante, inteligente, que soubesse como ninguém ler a mente das pessoas (um psicólogo, por exemplo) e tivesse paciência e meticulosidade para usar essa máquina da injúria para destruir um desafeto? O que essa pessoa seria capaz de fazer? E se bastasse fazer com que acreditassem que alguém (um homem principalmente) cometesse algum crime, mesmo sem provas, ou provas forjadas, se bastassem as palavras de uma mulher vitimada (mesmo não provada), mas de caráter dúbio e com deliberada intenção de destruir um homem, por puro desejo de vingança? Eis o que nos traz a dica de hoje, Garota Exemplar.

A obra da jornalista norte americana Lillian Flynn, lançado em 2012 e adaptada para o cinema dois anos depois, foi laureado por sua trama surpreendente, cheias de reviravoltas e por mostrar quão extremados podem ser os atos de um casal que passa a se odiar e como pode ser contundente e destrutiva a vingança. Não pretendo falar da obra em si porque teve sucesso tanto no cinema quanto na literatura e a sua narrativa é bem conhecida (ou pelo menos deveria). Um ponto que nenhuma crítica se empenhou em observar na época de lançamento do livro e do filme e que é crucial para o desenrolar da narrativa é como a imprensa e as mídias podem ser o céu e o inferno na vida de alguém e como a justiça e opinião pública, com o avanço do politicamente correto, transformaram uma proteção em máquina de destruir reputações masculinas.

Realmente o livro é impactante. A trama tem a qualidade de agradar a leitores iniciantes e iniciados, vou me explicar: para leitores mais acostumados a tramas de suspenses, fica claro desde o início (um pouco de spoiler) que o marido Nick Dunne é inocente. Com duas vozes paralelas – a dele contando o que aconteceu a partir do desaparecimento da esposa, Amy Elliot Dunne, e a dela através de seu diário que vai contando como se conheceram até seu desaparecimento. Uma vida perfeita, um casal perfeito, uma mulher perfeita. Chegamos a acreditar nas evidências de que ele é realmente o culpado e ver por quanto tempo ele sustentará a farsa. Assíduos desse tipo de narrativa percebem que tudo é uma mentira contada por ela e o que prende ao livro e descobrir como Amy consegue criar uma cena de crime tão perfeita que o seu esposo não consegue se desvencilhar. Para leitores menos experientes, mesmo esses mecanismos não dão a pista de que a jovem é a vilã da história. Ponto para autora que sabe prender vários tipos de leitores, porém esse não o meu ponto de vista e que me chamou a atenção no romance, vamos a ele.

A forma como Amy deixa as pistas leva todos a suspeitarem de seu marido, como já foi dito. Mas a vida de Dunne começa a desmoronar quando cai na mídia e a imprensa começa a acompanhar todos os rumos da história. Acampam na frente de sua casa para manter a atenção dos espectadores, fazem especulações e inflamam a já delicada situação. Apresentadores sensacionalistas se aproveitando de todo o clamor popular começam a tomar partido e o que era a vida pacata de um homem comum vira um inferno de invasão de privacidade e destruição de reputação.

Mesmo quando a esposa volta e muda todo o rumo da narrativa (outro spoiler), a mídia televisiva e da internet tentam tirar proveito. Uma fala que descreve bem o que está acontecendo é a do advogado que, num dado momento, diz que os argumentos de Nick não dão tv boa, ou seja, não jogam a opinião pública e os possíveis juízes no seu provável julgamento a seu favor.

Sendo jornalista, a autora conhece bem esse meio. Nós, como consumidores de mídias também e somos ávidos por histórias empolgantes e sórdidas, faz-nos ver como nossas vidas no fundo são boas. E essa imprensa sensacionalista que vive de escândalos é mostrada de forma como realmente é: não importa quem diz a verdade, o que importa é uma boa fofoca, que venda e dê audiência. A protagonista é uma psicóloga metódica e disciplinada, ela conduz nós, leitores, e jornalistas a acreditar e a odiar seu marido. O advogado, sendo o melhor nesse tipo de caso – conflitos conjugais que terminam em crime – também conhece esses profissionais e faz o protagonista ser admirado e perdoado. Quando Amy volta (mesmo com uma história com furos) e reata com seu esposo, ambos se tornam os queridinhos da América. É uma crítica contundente tudo isso. A autora usa a trama para mostrar como existe e funciona essa indústria da infâmia que alimenta sites e revistas de fofoca, programas que exibem o pior das relações humanas, Flynn expõe o lado negro do quarto poder.

E eu fiquei pensando nesse livro durante esses dias ao ver o filme (confesso que pela primeira vez) e acompanhar um tanto dispersamente o caso do estupro do Neymar. Sem fazer qualquer defesa ou apologia ao menino Ney (nem simpatizo com ele, aliás), acho inclusive que ele foi no mínimo ingênuo – para não dizer burro – de cair numa armadilha dessas. O que me reportou ao caso foi o fato de que ele não é o primeiro a cair nesses golpes oportunistas de mulheres que querem se favorecer às custas de famosos e, ao não conseguirem seu intento (um casamento ou pelo menos um filho – o mais fácil), partem para a vingança usando toda a máquina jurídica e de mídia contra o infeliz.


Ao fazerem uso de maneira premeditada de legislações que protegem as mulheres e do senso comum e politicamente correto de que o homem é a personificação e que qualquer mulher estará sempre acima de qualquer suspeita, elas acabam destruindo a reputação de homens públicos ou nem tão renomados assim. É comum vermos casos de denúncias de estupros ou agressões que levam muitas vezes homens corretos que só não quiseram continuar uma relação, talvez, e só depois de algum tempo, no decorrer do processo, descobre-se que a denúncia foi falsa, mas já tendo destruído a vida do sujeito, seja famoso ou não.

Mas o pior de tudo isso é o efeito colateral dessas denúncias falsas, principalmente as cercadas de sensacionalismo. Devido ao crescente número desse tipo de denúncia, o que passa a acontecer é que essas ferramentas de proteção das mulheres, que são relevantes – não desconsideremos que existem muitos indivíduos merecedores de muita porrada pela forma como tratam suas companheiras, sujeitos que mereciam serem empalados por cada porrada dada numa mulher – perdem a confiança da opinião pública. Para cada denúncia falsa desse tipo (considerando que no momento desse texto, o Neymar ainda está sob investigação) todo o aparato da justiça deixa de ser direcionado a quem realmente precisa e no caso de pessoas públicas, faz com que essas notícias percam sua importância.

Eu poderia ficar horas aqui enumerando casos de denúncias falsas e como isso se assemelha ao enredo do livro, mas por hora, deixo a dica de leitura, o toque para possíveis leitoras para que sejam mais responsáveis e cuidadosas nas suas escolhas – a começar pela escolha do parceiro – e para os possíveis leitores que mesmo não sendo o Neymar, devem ficar espertos com as garotas exemplares que podem cruzar seu caminho. Até a próxima.

terça-feira, 21 de maio de 2019

THANOS, O VILÃO DO BAIXO LEBLON



Thanos é o vilão do momento. A essa altura do sucesso do filme Vingadores e de todo o rebuliço nos últimos anos com os filmes da Marvel Studios, ele não só não precisa de apresentações, como (acho que posso dizer sem medo de errar por excesso) entrou para o hall dos maiores vilões do cinema. Está entre os maiores porque, de certa forma, ele é mais real do que pensamos, vejamos por quê.
O que o move é o seu desejo de equilibrar o universo. Thanos considera que as criaturas que vivem nos mundos habitados (estamos falando de uma narrativa criada para os quadrinhos, não esqueçamos) destroem seus recursos, povoam de forma desordenada levando até ao próprio extermínio, ele acredita que todo o universo vai deixar de existir se algo não for feito. E ele faz. Reúne as Joias do Infinito e com elas reequilibra as coisas dizimando metade de todos os seres do universo, pois acredita que, reduzindo as populações pela metade, a que sobrar ficará grata por ter mais terras e possibilidades de sobrevivência. Ele se vê como alguém inevitável e acredita que está fazendo o bem.
O problema é que ele desconsidera alguns fatores relevantes para pôr seu plano utópico em prática: a resistência desses povos para preservar os seus, o desejo de lutar para desfazer tudo e trazer de volta quem perderam e ainda, desconsidera as condições populacionais que permitiram a esses mundos evoluírem. Sua visão malthusiana faz com que ele não perceba que com metade das populações, perde-se também metade da força produtiva, metade da mão-de-obra e metade dos consumidores, isso gera escassez, carestia e uma vida muito pior do que antes e os sobreviventes lutarão para restaurar o que tinham porque, por pior que pudesse parecer, era o seu mundo.
Não satisfeito com a rebelião, por achar que foram ingratos, que a lembrança do mundo como era faz com que não aceitem o futuro maravilhoso e perfeito que os aguardam, Thanos toma a decisão drástica de destruir todos e então criar novos habitantes para esses mundos, criar os povos ideais, que não possuem quaisquer lembranças do mundo anterior e que serão gratos pelo porvir nessa realidade idílica, a materialização do Éden. No fundo, ele não é mal, ele só quer equilibrar a realidade e finalizado seu projeto – não importando quantos morrerão para que esse equilíbrio chegue – irá para o seu jardim, cuidar de sua vida, sua horta e viver em paz.
Olhando assim, parece coisa de quadrinhos, esse vilão que tem o plano perfeito, mas que destruirá tudo e todos, que precisa ser detido e todos torcemos para que os heróis vençam esse mal absoluto, todos queremos que no fim, seu projeto de poder falhe, ninguém em sã consciência apoiaria um ser assim. Ninguém fica ao lado do vilão. Não fica?
Fica. O desejo de Thanos, a reengenharia social, o alarmismo como justificativa à criação da sociedade perfeita amparando o Homem Ideal, o Homem do Futuro, não é um discurso inventado, muito pelo contrário, ele foi largamente (e ainda é) aplicado desde o início do Século XX, sempre promovido por líderes abnegados que lutavam por uma causa nobre e em nome desse futuro glorioso e utópico. Esse plano de Thanos já foi chamado de vários nomes: Revolução Bolchevique, Nazismo, Fascismo, Revolução Cultural, Revolução Cubana, mais recentemente, Bolivarianismo e Thanos já teve diversos nomes também: Lênin, Trotsky, Hitler, Mussolini, Mao, Fidel e mais recentemente, Maduro.
E o mais assustador disso tudo é que diferentemente do que esperaríamos que fosse o comportamento das pessoas diante de uma personagem assim, muitas apoiam os Thanos da vida real. Os mesmos que aplaudem o Capitão América quando este grita “Vingadores, avante” para derrotar o grande vilão, esse símbolo do mal no mundo (ou nos mundos), são os mesmos que apoiam os tiranos reais, são os mesmos que, a despeito de todas as mortes e genocídios promovidos por esses déspotas, ainda há aqueles que bradam com orgulho seus ideais e ainda sonham com o grande líder cor violeta que irá dizimar todos os que impedem que o futuro glorioso chegue. Os mesmos que aplaudem os Vingadores, lutam para colocar no poder um Thanos para chamar de seu e que provavelmente emergirá nas hortinhas orgânicas ou bares de cerveja artesanal da Vila Madalena ou do Baixo Leblon, com sua pele arroxeada e um coque samurai.

"Se a prudência da reserva e decoro indica o silenciar em algumas circunstâncias, em outras, uma prudência de uma ordem maior pode justificar a atitude de dizer o que pensamos." - (Edmund Burke)