Millor Fernandes:


Jornalismo, por princípio, é oposição – oposição a tudo, inclusive à oposição. Ninguém deve ficar acima de qualquer suspeita; para o jornalista, não existem santos.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Rafael Andreazza Daros: Educar ou Civilizar?

A recente votação sobre a redução da maioridade penal na Câmara certamente acirrou os ânimos nas redes sociais. Pessoas contrárias à redução recorrentemente apelam à questão da educação (as cadeias não educam e os jovens saem de lá pior do que entraram, é preciso educar para não precisar punir, etc). Entretanto, o problema real de quando falamos de educação é que o termo se tornou um tanto nebuloso, uma cortina de fumaça, que pode significar várias coisas ao mesmo tempo que sequer possuem qualquer conexão lógica entre si.

A fim de esclarecer e desfazer esta confusão, é importante começarmos com definições. Desta maneira, podemos dividir o termo educação em outros 3 menos abrangentes, e com significados totalmente distintos. São eles: instruir, sociabilizar e civilizar. Esta distinção deve ser feita antes que qualquer debate sério a respeito da educação possa ser feito, caso contrário não passará de uma discussão infrutífera e nebulosa, onde cada lado tentará expor os seus argumentos partindo de uma concepção diferente de educação (ou mesmo misturando diferentes concepções), dificultando ou mesmo impedindo qualquer consenso final sobre qualquer questão relativa a educação.

O primeiro é obviamente o mero conhecimento técnico e o desenvolvimento de habilidades e talentos. É o ensino de matemática, finanças, economia, geografia, história e tutti quanti. Já a sociabilização e o processo civilizatório são mais parecidos entre si, mas que frequentemente se confundem. A sociabilização é a moldagem de comportamentos para que se adequem à vida social: dar bom dia, cumprimentar, não gritar, não agredir. Já o terceiro é referente aos requerimentos para a vida numa sociedade civilizada. Questões de cunho moral principalmente, tais como respeito aos direitos alheios e a tolerância. É a educação moral propriamente dita.

Sei que pode parecer meio confuso a princípio, mas sociabilizar e civilizar não são, nem de longe, similares e muito menos complementares. A sociabilização prepara o indivíduo para o convívio social, ao passo que o processo civilizatório o prepara para a vida em uma sociedade civilizada.

É perfeitamente possível que um indivíduo seja completamente sociável, mas, para todos os efeitos no que se refere aos pré-requisitos da vida em sociedade, um bárbaro. Indivíduos dentro de uma mesma tribo indígena podem ser completamente sociáveis e educados uns com os outros, mas ao mesmo tempo não reconhecer sequer o direito à vida ou à dignidade de outros povos. Na época antes do advento da agricultura, o alimento era escasso. Nesse caso, até mesmo a guerra se torna justificável, principalmente se a alternativa era morrer de fome. Há relatos de sociedades tribais onde o valor de um homem era medido pelo número de inimigos que ele matou, pois se acreditava que ele incorporava o espírito do inimigo morto em batalha. Eles poderiam até serem sociáveis uns com os outros dentro de uma mesma tribo, mas certamente não eram civilizados.

Psicopatas e pedófilos são outro exemplo. Psicopatas, principalmente os não-violentos, são frequentemente ótimos galanteadores e que sabem como manipular e seduzir suas vítimas. No sentido oposto, um sujeito pode até ser antissocial no que se refere a comportamento (arrogante, grosseiro, presunçoso...), mas ser uma pessoa honesta e honrada. Neste caso, temos um indivíduo civilizado, mas que simplesmente não é muito sociável. Apesar de serem personagens fictícios, Dr. House e talvez até mesmo um Sherlock Holmes podem ser ótimos exemplos disto.

Feitas essas explicações, fica fácil perceber a confusão que o termo educação pode fazer com a mente das pessoas, ao englobar todas essas definições num único pacote sem fazer qualquer tipo de distinção aparente. Quando um opositor à redução da maioridade penal fala sobre educação, de que tipo de educação exatamente estamos falando? Instruir, sociabilizar ou civilizar?

Outra coisa comum que se vê nos opositores da redução da maioridade era a repetição de clichês “mais educação, menos punição”. Mas por que estes hão de ser excludentes? Se pensarmos em termos de educação parental, podemos ver que são complementares, e não excludentes. Por que outro motivo um pai ou uma mãe castiga o filho, se não para ensiná-lo e deixar bem claro que aquele comportamento é inaceitável?

Desta forma, pode-se argumentar que não há dicotomia entre educar e punir, uma vez que menos punição é um efeito de uma boa educação. Se mais educação leva a menos punição, não é porque a educação torna a punição desnecessária, obsoleta ou ineficiente, mas porque simplesmente não faz sentido punir a honestidade. Ou você já viu algum pai castigar um filho por bom comportamento?

Isto em termos quantitativos. Também é necessário falar em termos qualitativos, o que significa dizer que a punição deve ser proporcional ao delito. Se ela for exagerada, vira autoritarismo ou opressão. Se for branda demais, praticamente acaba incentivando o comportamento que se quer eliminar.

Deste modo, pode-se argumentar que há uma correlação causal e inversa entre a quantidade de educação e de punição, uma vez que o próprio propósito da educação é promover o bom comportamento e reduzir o mau comportamento. Entretanto, a comparação com a educação parental é imperfeita. A educação parental é, antes de tudo, educação no sentido de sociabilização. Já a educação a que nos referimos na questão da idade penal e/ou ressocialização de criminosos é uma educação no sentido de civilizar o indivíduo. Desta forma, fica até mesmo impossível incorrer em qualquer relação causal entre mais educação e uma redução do comportamento antissocial. Há até mesmo dados históricos que sugerem que sequer haja qualquer relação entre ambos.

A nossa desgraça é que o processo civilizatório é frágil e imperfeito, e muitas vezes questões irracionais ou emocionais, como o ódio e o fanatismo, e inclusive o próprio caráter da pessoa, podem dificultar ou até repelir qualquer tentativa de civilizar o indivíduo, e que nenhuma quantidade de instrução formal é capaz de curar. Hitler certamente era uma pessoa educada no sentido de instrução formal, capaz de deixar qualquer “expert” no chinelo se o assunto for estratégia militar ou como influenciar as pessoas, e provavelmente era uma pessoa bastante sociável dentro de seu círculo de contatos mais íntimos. Entretanto, isso não muda o fato de que suas ações não passaram de pura barbárie.

Isto não foi uma característica isolada do nazismo. Todos os movimentos mais abjetos do século XX – nazismo, comunismo e eugenia – partiram das camadas instruídas da população, incluindo intelectuais e até psiquiatras, não do “populacho”, para usar um termo vulgar. Um completo analfabeto pode ser mais civilizado do que um doutor com P.h.D., a despeito de sua falta de instrução. Uma prova disso pode ser vista na quantidade de pessoas de origem humilde e que, no entanto, levam uma vida honesta. Facções criminosas como o Estado Islâmico são outro exemplo de pessoas instruídas que, no entanto, não passam de completos bárbaros, renegando completamente a humanidade e a dignidade dos indivíduos que não fazem parte de sua pequena “tribo”.

Concluindo, creio que o resumo da ópera seria: preste muita atenção nas definições dos termos de um debate. Não deixe que definições vagas (ou mesmo a falta delas), e termos nebulosos dificultem ou incapacitem sua capacidade de pensamento crítico. Educação é, entre muitos outros, um termo que cada vez mais tem sido amplamente usado de forma genérica e pouco específica a fim de confundir o público para avançar qualquer agenda política que seus “defensores” queiram promover.


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