Millor Fernandes:


Jornalismo, por princípio, é oposição – oposição a tudo, inclusive à oposição. Ninguém deve ficar acima de qualquer suspeita; para o jornalista, não existem santos.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Ídolos Obsoletos



Que tipo de pessoa você admira? Peguei-me pensando esta questão estes dias, perguntando-me de onde vem esta atitude de admirar determinadas figuras da história ou no mundo intelectual.

Alguns não admiram uma pessoa em particular, mas uma classe de pessoas, como policiais e bombeiros, ainda que isso não pareça ser tão corriqueiro no Brasil. O mais comum por aqui é admirarmos figurões políticos ou intelectuais. Ou outros que julgamos que tenham feito grandes contribuições para a humanidade.

Pensando em exemplos, me veio à cabeça Mahatma Gandhi. É inegável que ele é, provavelmente, uma das pessoas mais admiradas mundo afora, por mais que desconheçam o perigo por trás de seu pacifismo ingênuo ou o fato de que suas políticas de autossuficiência tenham condenado a Índia ao atraso e a uma pobreza abjeta por décadas.

Surpreende-me a ingenuidade de certas pessoas que realmente acreditam que podem combater violência com moralismo. É como se acreditassem que conseguiriam apelar para a compaixão do bandido na hora do assalto. Ou como se acreditassem que discursos de "paz e amor" (ao estilo dos Hippies dos anos 60) seriam mais eficazes em evitar a deflagração da segunda guerra mundial do que simplesmente minar o poderio bélico alemão antes que lançassem o primeiro ataque. Puro pensamento mágico, daquele mesmo que faz as crianças acreditarem em papai noel e que faz os adultos acreditarem em bobagens como "karma", horóscopo e afins.

Duvido que a maioria dos milhões de admirados de Gandhi mundo afora fossem hesitar (muito) em matar o assassino de sua família se tivessem a chance. Ou que hesitariam em usar a força se isso significasse salvar a sua família. Parece-me que a necessidade das pessoas de pensar bem de si próprias é uma das maiores fontes de mentira e hipocrisia no mundo.

E quanto a Jesus Cristo? Seria mera coincidência que o secularismo tenha surgido bem no seio da civilização cristã e tornado o mundo cristão um dos mais avançados e tolerantes do mundo? Bom, nem mesmo a mensagem de Cristo impediu que o mundo islâmico fosse mais avançado e mais tolerante que o mundo cristão durante boa parte da história dos últimos 2 milênios. Parece-me mais plausível que o responsável por isso tenha sido mais o conjunto de tradições, valores e costumes legados a nós através do cristianismo, e menos pela mensagem de Cristo. Mas vamos a um exemplo.

A linguística pode nos fornecer uma boa explicação. Como dito pelo analista político Flavio Morgenstern em sua palestra Política além das Aparências, as palavras são como recortes da realidade. Elas nos permitem entender a realidade, mas ao mesmo tempo são um limitador. Conceitos únicos a determinados idiomas permitem que eles vejam um mundo de uma maneira diferente. Como explicar matemática, por exemplo, para um idioma que não conheça a noção de quantidade? Ou história em um idioma que não entenda a noção da passagem no tempo? “O poder de nomear é o poder de conhecer”. Como podemos entender algo que não possamos nomear?

Ainda de acordo com Morgenstern, na tradição islâmica, Deus (ou Alá) deu nome a todas as coisas. Isso quer dizer que, a priori, é como se aquilo que Deus não nomeou não existisse. Na tradição bíblica, Deus deu ao homem o poder de nomear. Assim, conforme o conhecimento do homem se expande, ele pode nomear estes novos conceitos de acordo. Isso permitiu que o mundo cristão desenvolvesse um sistema filosófico muito mais avançado que o islâmico e que provavelmente fez com que a visão de mundo cristã casasse melhor com a filosofia grega que, juntamente com o direito romano, formam os 3 pilares da civilização ocidental. Que outra fonte de direito o mundo islâmico conhece além da lei do alcorão (a Sharia)? Talvez isso explique, pelo menos em parte, porque boa parte do mundo islâmico ainda hoje é tão obcecado com a obediência às leis sagradas de sua religião e deseje implementar a Sharia.

Isto é apenas um exemplo do tipo de conhecimento que não está disponível para boa parte da população, mas que não obstante poderia ser capaz de mudar toda uma compreensão de mundo. Disso vem a sabedoria que diz que o tamanho da realidade de cada um depende da vastidão de seu conhecimento. Como já dizia Thomas Sowell, é necessária uma quantidade considerável de conhecimento apenas para compreender a vastidão da própria ignorância.

Thomas Sowell é um dos raros autores que conseguem ser tão incisivos em suas ponderações a ponto de ser capaz de mudar toda uma visão de mundo com poucas palavras ou com simples questionamentos. Por exemplo, em The Vision of the Anointed (A Visão dos Ungidos, sem versão em português), Sowell afirma que, apesar de ser importante salvar inocentes do encarceramento, é necessário perguntar se é MAIS importante salvar um inocente do encarceramento do que salvar dezenas, talvez centenas, de inocentes das mãos de criminosos violentos. Quando você começa a fazer tal tipo de questionamento, começa a perceber que é irreal perseguir algum ideal de “justiça cósmica”, uma vez que o sistema penal é apenas uma solução imperfeita para lidar com um problema real, e que entre essas imperfeições está a falta de garantia de que JAMAIS será condenado um inocente. A alternativa a isto é o caos da anarquia. Eis aqui a grande diferença entre um revolucionário e um reformador. O revolucionário crê conhecer o mundo melhor que todos os outros e criar uma solução perfeita, à revelia da experiência de bilhões de pessoas, no presente e no passado. O reformador entende o delírio de tal visão, e compreende que o máximo que podemos esperar é buscar uma forma de combater os equívocos e reduzir os abusos o máximo possível.

É lastimável a incapacidade de auto-crítica e de humildade de boa parte do nosso universo educacional, incapaz de fazer qualquer coisa minimamente remota acerca deste tipo de questionamento, mas que enchem nossos jovens de bobagens ideológicas e os fazem chegar a universidade cheios de certezas sobre o mundo. Se há algo que realmente possa ser chamado de “educação libertadora”, é a capacidade de demonstrar aos alunos o quão limitado pode ser o nosso real entendimento da realidade, e não todo esse blablabla paulofreiriano que divide o mundo em opressores e oprimidos. O primeiro poderia levar nossos alunos a questionar se muitos dos problemas de hoje – normalmente atribuídos ao preconceito e à “opressão”, por exemplo – não possuem outras causas ou se não são simples consequências das soluções imperfeitas que encontramos para lidar com os problemas da realidade. Mas é claro que toda essa baboseira de opressores e oprimidos é muito mais cômoda para “educadores” que querem se sentir importantes e que se consideram seres “iluminados” cuja missão é “conscientizar” os outros de sua condição de oprimidos e que, se puderem “salvar” almas em quantidade suficiente, serão capazes de criar um “mundo melhor”. A mentalidade revolucionária é uma praga que afeta não apenas jovens inconsequentes. Se nossas universidades estão gerando mais ativistas e revolucionários do que pensadores, é porque os professores são, eles próprios, propagadores desta visão. Precisamos urgentemente de mais autores como Sowell nos nossos currículos educacionais.

Já passou da hora de jogarmos na lata do lixo essa idolatria cega a líderes carismáticos, mas que pouco ou nada fizeram de concreto para melhorar o mundo. Há de fazer com que as pessoas encarem a realidade como ela é, e não como queremos que seja. Dar mais ouvidos a alertas como o de Burke, que dizia que tudo que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem não façam nada, do que a mensagens moralistas e bonitinhas como as de Gandhi. Imagino o que teriam sido dos pobres judeus na Alemanha nazista se tivessem seguido o conselho de Gandhi.

Deixar de admirar personalidades patéticas e ingênuas como Gandhi talvez seja a maior prova de sanidade e maturidade intelectual nos dias de hoje.

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"Se a prudência da reserva e decoro indica o silenciar em algumas circunstâncias, em outras, uma prudência de uma ordem maior pode justificar a atitude de dizer o que pensamos." - (Edmund Burke)