Millor Fernandes:


Jornalismo, por princípio, é oposição – oposição a tudo, inclusive à oposição. Ninguém deve ficar acima de qualquer suspeita; para o jornalista, não existem santos.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Ilair e Beethoven: Uma mulher e seu cão


Naquele dia, as nuvens carregadas não traduziam a gravidade da chuva que ainda iria acontecer. Mas havia um vento incomum. Da mesma forma como incomum era o alvoroço dos pássaros, mudando freneticamente de uma árvore pra outra. Prenúncio do quê? Sei lá, pensava ela, enquanto olhava rua abaixo, pra ver se avistava o irmão no prédio ali em frente.

A casa em que morava Dona Ilair, tinha poucos cômodos. Apesar disso, ela a considerava sua fortaleza. Sem reboco nas paredes, era fruto de um longo período de trabalho. Quase uma vida inteira. O seu canto, depois da separação. Móveis simples, fogão de quatro bocas, geladeira duplex, mesa, cadeira e sofá. Tudo comprado em lojas populares, mas tudo muito limpo e arrumado.

De especial mesmo, só a companhia do viralata Beethoven. Tradução irretocável de fidelidade canina, ele não se recolhia antes de sua dona, nunca. E tinha direito a um tapete especial, ao lado da cama dela. Não era um cão desses de madame, mas tinha lá suas regalias. Os dois se completavam. Dependiam um do outro. Como a orquestra depende do maestro e este da partitura.

De repente, o céu fechado desabou. O que os homens do tempo chamam de “cabeça d’água” caiu sobre aquela região com a força de um tsunami. Água morro abaixo, em um volume nunca antes visto, levando tudo.

Ilair olhou em volta e sentiu medo. A água levando árvores, pedras, carros, destruindo casas. A fortaleza dela ameaçada. Pensou no que tinha de maior valor. A vida, concluiu. E a companhia do Beethoven. Não teve dúvidas, elegeu a lage como o local mais seguro para ela e seu cão. Subiu, a tempo de ver parte da sua fortaleza ruir.

O que se deu a seguir era o prenúncio do fim. A casa desabando, como o mundo ao redor. Ela abraçada ao Beethoven. Vizinhos desesperados lhe lançam uma corda. Ela agarra. Passa a corda em volta do corpo, dá um nó. Abraça o Beethoven e salta. Um salto desesperado de vida ou morte.

A escolha seguinte seria pior ainda. A força que lhe restava não garantiria a vida dos dois. Ilair e Beethoven se olham uma última vez. Ela agarrada a ele. A correnteza engole os dois. Por um instante nenhum deles estava a salvo. Ela ressurge e ele se vai, levado pela força d’água.

Ilair se agarra à corda como quem se agarra à vida. A força dos vizinhos e a vontade de continuar viva vencem a sinfonia trágica da natureza. Ela é salva. Entretanto, a vida nunca mais será a mesma. Naquele dia, naquela chuva, Beethoven decidiu recolher-se antes. Para sempre.

Ficção, de Maranhão Viegas, para a história real de Dona Ilair.

Esse conto escrito de forma tão profunda e suave por Maranhão Viegas deu ao cãozinho Beethoven um final épico. Que me permitiu ver essa tragédia por um ângulo mais reconfortante.

Dona Ilair tentou salvar seu cão, e poderia ter morrido junto com ele por este gesto. Quem sabe o cãozinho "percebeu" que seria melhor que ela o soltasse; para que dona Ilair pudesse salvar a si própria e a mordeu? Quem sabe no final, Beethoven ao invés de vitima inocente, que é, por não ter culpa da ação ilógica da homem. Possa ter sido tão herói quanto dona Ilair, que tentou salva-lo ou seus vizinhos que a salvaram?

Prefiro pensar desta forma.

2 comentários:

  1. A imagem daquele cachorrinho não sai da minha cabeça. Vai pra Deus, Beethoven! Não te conheci, mas te amo!

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