Millor Fernandes:


Jornalismo, por princípio, é oposição – oposição a tudo, inclusive à oposição. Ninguém deve ficar acima de qualquer suspeita; para o jornalista, não existem santos.

quarta-feira, 2 de março de 2016

A CEGUEIRA DE ÉDIPO



Os livros sempre me levam a reflexões e devaneios. Sou de Literatura e por essa razão fazem parte do meu cotidiano e essenciais para o meu entendimento do mundo. Uma obra que li há alguns anos e que me vem ao pensamento com alguma regularidade nos últimos tempos é o romance de Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser.

Ambientado na então Tchecoslováquia durante o período que ficou conhecido como Primavera de Praga, o romance traz uma dura crítica aos regimes do leste europeu mostrando a corrupção e passividade dos líderes políticos locais ao se subordinarem à poderosa URSS. Na trama, o protagonista é um respeitado médico de Praga que vê sua vida se deteriorar a partir de um artigo que publica. Ao se recusar a revê-lo, tem sua vida profissional prejudicada até que, não podendo trabalhar mais em nenhum canto como médico, retira-se para o campo e passa viver como um fazendeiro.

No artigo escrito por ele, há uma análise da obra Édipo Rei, de Sófocles. Na peça, ao descobrir que seus erros provocaram a desgraça de seu povo, o Rei Édipo fura os próprios olhos como auto punição. O trecho é analisado pelo médico (que nesse momento fala por Kundera) apontado o flagelo do herói grego como uma metáfora. Ele diz que esse auto sacrifício é o ato de abrir mão do poder político ao tomar consciência que seu desgoverno traz desgraça ao seu povo. No livro, essa crítica é direcionada ao políticos locais que não adotam pra si o sacrifício edipiano preferindo manter seu povo sofrendo a admitir o erro da má gestão.

E é essa metáfora que tem sido recorrente em meus pensamentos. Estamos vivendo uma situação única onde a maioria da população rejeita o governo (tanto o legislativo quanto o executivo), há uma crise séria, pra não dizer calamitosa e um escandaloso emaranhado de roubos, negociatas e pilhagens do dinheiro público em nome de um projeto de poder. E mesmo numa situação totalmente adversa, mesmo com uma rejeição que beira os 90% temos uma presidência que insiste em se manter no poder.

Assim como no livro, vivemos um regime estatista (pra não dizer socialista), assim como na livro, temos um corpo político passivamente conivente e assim como no livro vivemos uma situação de total desalento do povo.
Como o povo de Creta, governado por Édipo, fomos assolados por pragas desferida pelos deuses da liberdade e da boa governança. Assim como os cretenses, estamos jogados à própria sorte por escolhas feitas por líderes que não viam (ou não queriam ver) os seus erros, porém, diferente de Creta, o responsável tomou consciência do seu erro e salvou seu povo com um auto sacrifício. Diferente deles, a presidente da república recusa a furar seus olhos, recusa-se a fazer seu auto sacrifício que seria sua renúncia do cargo. Se como diz, ela governa para o povo, assim como Édipo, deveria exilar-se, cega, alquebradas, mas com a dignidade de quem abriu mão da própria vaidade em nome de um bem maior. Mas não é isso que ela busca. Ela prefere a arrogância cega de um líder podre à honra e altivez de uma cegueira edipiana.

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