Por Kleryston Negreiros
Faz alguns meses, um
episódio acontecido comigo em sala de aula ficou retinindo em meu pensamento e
me levou a algumas ideias sobre o modo como as pessoas vêm interpretando os
fatos e as palavras.
A situação foi a seguinte:
numa aula de produção de texto, uma professora de Língua Portuguesa pediu para
ser ouvinte. Como a uma colega e está iniciando a carreira, não vi problema em deixá-la
assistir. Num dado momento, a mesma puxou uma discussão e fez uma relação entre
abandono do filho pelo pai com aborto, usando inclusive o termo “aborto paterno”
(o que é uma expressão vazia de sentido e lógica). Quando atentei para a
incoerência da afirmação dela e como o termo era nonsense – apelando para a
etimologia da palavra – escuto dessa professora a seguinte frase: vamos deixar
de lado a etimologia e focar no drama social.
Num primeiro instante fiquei
escandalizado com essa afirmação, mas logo após o episódio e refletido sobre
ele vi total coerência e sentido no que ela disse. Não que sua afirmação
estivesse correta, não estava, a coerência que vi foi contextual. Ela, uma
jovem recém-formada num curso de licenciatura em Letras numa universidade
pública do Rio de Janeiro, não seria diferente que ela pensasse assim. Considerando
o cânone em instituições públicas e privadas desse país, é natural que ela
ignore deliberadamente, para justificar uma ideologia e seu argumento caber num
discurso social sem sentido, deturpe certos preceitos e sentidos reais das
palavras. E que preceitos são esses? É o que quero dividir com os leitores
desse blog.
O processo de linguagem é a transcendência
da realidade. É através dela que descrevemos o mundo natural e real e o levamos
para o mundo das abstrações, o que permitiu nossa evolução, já é sabido,
inclusive, que a crença de que o pensamento origina a linguagem está errado, na
verdade, a linguagem é que forma o pensamento e quanto maior o domínio do
indivíduo sobre ela, maior sua capacidade de reflexão e pensamentos complexos.
E isso já era reconhecido
ainda na Idade Média, quando foi desenvolvido o Trivium. Já nessa época, quem
se propunha a estudar as artes liberais, tinha que estudar a lógica (aplicada a
linguagem primeiramente) para depois aprender a gramática e aí a retórica. Esse
encadeamento fazia com que o falante tivesse um profundo entendimento da língua
latina (a corrente e erudita) e a sua língua nativa e, por conseguinte, um
profundo entendimento do mundo que o cercava.
Porém, isso se perdeu no
tempo e o que ocorreu foi que a cada século, principalmente a partir do XIX e maciçamente
no XX, a lógica foi sendo retirada cada vez mais do estudo de linguagens e de
maneira deliberada houve o empobrecimento do ensino de idiomas, que acarretou o
fenômeno que temos hoje: a total incompreensão de conceitos básicos, a nulidade
em estabelecer uma simples relação de causa e efeito ou mesmo compreender o
sentido mais simples ou uma regra óbvia de gramática. E por que isso aconteceu?
Bem, foi algo deliberado. Qualquer
estudante mediano de Letras aprende na graduação que a primeira forma de
dominação é a da linguagem, o Império Romano, ao dominar um povo, a primeira
coisa que fazia era impor o Latim como língua oficial e proibia o uso da língua
local. Além disso, formava pelotões com nativos de regiões distintas ou fazia
com que soldados servissem a quilômetros de suas terras. A língua é o mais
poderoso agente de dominação.
E qualquer tiranete que
queira impor sua doutrina ou seu reinado absolutista precisa primeiramente
fazer com que as pessoas pensem como ele quer e a forma mais adequada para isso
é através do domínio do ensino da língua materna. Domine a palavra e você domina
todo um povo. Tanto isso é pertinente que Orwell, em seu romance 1984, criou a
Novilíngua.
Pois bem, e onde quero
chegar com tudo isso. A verdade é que o ensino de línguas aqui é feito para que
cada vez mais as pessoas percam a capacidade de discernir. Ao adotar pensadores
que descontruíram conceitos de certo ou errado e foram transformados em gurus
do estudo linguístico- o exemplo mais forte, para ficar só nos brasileiros,
cito Marcos Bagno, professor da UnB que defende que a Norma Padrão da Língua é
na verdade uma forma de prestígio que oprime o falante menos abastado – que vendem
a ideia de que há uma liberdade quase anárquica e que o estudo não deve oprimir
o falante, que ele só vai se emancipar se o seu falar for respeitado.
Esse relativismo linguístico
(que é visto em outras áreas do conhecimento) permitiu que palavras fossem
criadas esvaziadas de qualquer sentido, permitindo-se assim jogar qualquer
sentido nelas que convenha ao discurso vigente ou que sentidos novos fossem atribuídos
a palavras já usuais criando, assim, uma aleivosia dissonante de sentidos e
criando confusão e pouca ou nenhuma compreensão do que é dito ou escrito.
E quem ganha com essa torre
de Babel linguística é aquele que usa a confusão para vender um discurso
fazendo com que os poucos que ainda têm alguma compreensão do que é dito fiquem
atordoados com a incapacidade de correlações, assustados como os termos
político-econômicos perdem seu sentido ao serem adotados por essas paragens e
até mesmo se desesperam ao ver pessoas algumas vezes esclarecidas sendo
incapazes de perceber a lógica ou a relação de causa e efeito entre os fatos.
E tudo isso me veio à cabeça
e percebi, como disse acima, que fazia todo o sentido a frase de minha colega. Ela
é uma professora que foi instruída em sua graduação por professores que forma
antes adestrados nesse pensar tortuoso, que por sua vez, foram também formados
pelos que vieram antes deles por duas, três gerações de docentes remontando
quase meio século de ensino acadêmico enviesado. E ela é fruto disso. O pior. Ela
será a professora do seu filho, como tantos outros que saem anualmente das
universidades desse país.
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